terça-feira, 25 de dezembro de 2012

O mundo é o Colégio Medianeira

          Estudei todo o ensino fundamental no Colégio Medianeira, de onde saí apenas aos 14 anos. Tive uma infância feliz, mas lembro do início da adolescência como um período perturbado; é quando a personalidade começa a se consolidar, as reflexões emergem, as opiniões se formam e você começa a descobrir quem realmente é.

          Aos 9 anos de idade, o presente de meus sonhos era um autorama ou um videogame com volante, mas nunca tive coragem sequer de comentar esse desejo com meus pais porque, pensava eu, eles brigariam comigo se eu pedisse um brinquedo “de menino”. Meu brinquedo preferido, inclusive, era o Jeep da Barbie, e tenho certeza que ele me entusiasmava muito mais pelo fato de ser um carro do que por ser um acessório da boneca.

Sim, eu brincava de carrinho. Já era a feminista latente dentro em mim, revolucionando conceitos sexistas mesquinhos.

Nesta mesma idade, me inquietava o fato de aprendermos sobre a evolução humana sob o paradigma do sexo masculino; não bastasse as figuras sempre representando tão somente a evolução do corpo masculino, a denominação da espécie humana se resumia no termo “Homem”. Eu questionava porque o ensino da humanidade excluía as mulheres ilustrativa, lingüística e simbolicamente e focava-se nos indivíduos masculinos. Lembro-me de comentar com minha mãe que meu pai havia sido um homem das cavernas. Ela me corrigiu, afirmando que nós – mulheres – também havíamos sido. Ora, para uma compreensão infantil pautada em interpretações literais, meu pensamento não estava tão equivocado assim.  Simbolicamente, era isso o que ensinavam.


O ensino da evolução humana é ilustrativa, lingüística e simbolicamente masculinista.

Aos 10 anos de idade, enquanto minhas colegas ainda brincavam de Barbie, eu pedi uma guitarra para minha mãe. É claro que ela não atendeu meu pedido; ela não levou a sério um desejo que, mais de 15 anos depois, continua efervescentemente vivo e jamais morreria.
Aos 11, já possuía um vasto conhecimento musical e sentia-me limitantemente acorrentada por não poder compartilhar do meu interesse pela música com meus pares. Meus colegas não ouviam música. Não com consciência. Eram daqueles que acreditavam que o melhor disco do ano tinha sido a compilação da trilha sonora da novela das 8 e que só conheciam o que tocava nas rádios e no programa do Faustão.

          Diferente das meninas da sala, eu nunca me interessei por aqueles meninos sem graça da turma, os “galãzinhos de 12 anos”. Eu sempre gostei de homens mais velhos, intelectualmente provocantes e esteticamente perturbadores. Um de meus maiores sonhos, inclusive, era casar com o Jon Bon Jovi, 24 anos mais velho do que eu.


Eu tinha um sentimento muito certeiro, quase profético, de que eu seria a próxima esposa do Jon Bon Jovi (!).

          Meu sentimento de inadequação era marcante. Eu não me identificava com os colegas. Eu sentia falta de inquietude nas pessoas; de angústia; daquele caos interior que te move a pensar a vida de forma diferente, buscar respostas, agir criticamente sem se contentar com o que quer que seja; de ânsia por decifrar os mistérios da vida e compreender essa existência turbulenta.

          Ao iniciar o segundo grau, imaginei que seria o momento ideal para mudar de escola. Mudar de vida. Conhecer gente nova, menos previsível. Reconheço que melhorou ligeiramente, mas fundamentalmente tudo continuou igual. Fui crescendo, saindo para o mundo, me inserindo em novos contextos, entrando para o mercado de trabalho, trabalhando em diversas empresas e conhecendo todo tipo de gente. Curiosamente, tudo continuou como era no Colégio Medianeira.


          As meninas, hoje adultas, não mais desejam brincar de Barbie. Regrediram: querem ser a Barbie. Os meninos, hoje crescidos, continuam infantis: respondem a códigos masculinos medíocres e fazem o que quer que seja, até o que não desejam, para afirmar sua suposta masculinidade. Homens e mulheres permaneceram na infantilidade musical: abdicam até mesmo de seu gosto musical genuíno para serem aceitos socialmente. Não aprenderam a ouvir música com consciência e continuam acreditando que gostam daquilo que a mídia sugere que devem gostar. As meninas que naquela época ouviam pagode e axé só porque estava na moda são as mesmas que hoje ouvem sertanejo universitário pelo mesmo motivo. Naquela época, elas abominavam sertanejo porque a mídia o colocava como “música de diarista”. Mas é melhor não enfatizar este fato para que elas não fiquem sem graça. Reconhecer que se leva uma existência inautêntica é humilhante demais; é mais fácil negar e se justificar com desculpas esfarrapadas.


          As pessoas continuam padronizadas: são passivamente moldadas para pensar, agir, se vestir, se divertir e se interessar pelo que a televisão impõe inconscientemente em cada momento. Agora, no entanto, elas não têm mais a desculpa de serem apenas adolescentes. Já são adultas.

          Muita gente continua vivendo sob a proteção de máscaras, negando – para si mesmo, muitas vezes – sua verdadeira identidade a fim de aparentar estar bem ajustado à sociedade: tímidos tentando ser falsamente sociáveis e, para isso, enfrentando o doloroso desafio de viver interpretando um personagem o dia todo; pobres fingindo ser ricos; tagarelas que falam demais pois não suportam seu próprio silêncio; morenas tentando ser loiras; pessoas passando fome propositalmente para fingir que são magras.


          Hoje sei que o problema não era o Colégio Medianeira; era a sociedade. Qualquer contexto, dentro dessa mesma sociedade, seria essencialmente igual. Em qualquer canto as pessoas continuavam previsíveis, infantilizadas, moldáveis, manipuláveis. É um traço comum à maioria.


          Minhas lembranças do Colégio Medianeira são tão ruins que, logo após mudar de escola, sonhei, alguns vezes, que algo ainda me prendia lá. Eram pesadelos nos quais eu havia tido que voltar a estudar lá ou que de lá não consegui sair. Acordava aliviada lembrando que havia, sim, me libertado.

          Em essência, eu não me libertei. No mundo lá fora era igual. O mundo era como o Colégio Medianeira. Aos 14 anos, quando decidi mudar de escola, eu era ingênua e pouco ainda conhecia do mundo lá fora. Eu esperançava que qualquer outro ambiente seria melhor e tinha certeza que eu poderia me ajustar. Eu era ingênua demais para cogitar que mudar de escola não resolveria, e inocente demais para encarar o fardo que teria que carregar: durante toda a vida, eu nunca sairia do Colégio Medianeira.




sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

A arte de almoçar sozinho

         
         Se há algo que inquieta muita gente, é almoçar sozinho no intervalo do expediente de trabalho. É notável a apreensão de muitos quando a hora do almoço se aproxima. “Por favor, me espere porque vou me atrasar para sair”; “coitado do Fulano, almoça sozinho”; “não vá sem mim, já estou quase saindo”; “Fulano está em reunião, Beltrano em uma ligação e Cicrano terminando um relatório. Não acredito que terei que almoçar sozinho!”, queixam-se muitos, amargurados por um medo quase infantil.

          Tá certo, é divertido almoçar com amigos ou colegas. É agradável botar o papo em dia com aqueles que admiramos. É relaxante compartilhar momentos de lazer. O instinto gregário é traço marcante do ser humano e por isso o alegre sentimento de conforto nos devora quando estamos entre nossos pares.

          Para muitos, entretanto, o pavor da idéia de almoçar sozinho remete a um medo mais profundo e existencial: o medo da solidão. É a incapacidade de fazer as pazes com seu próprio eu, de enfrentar seus medos, de aceitar seus desejos genuínos, de reconhecer suas fraquezas. É a dificuldade de despertar para si mesmo, de atingir o esclarecimento sobre as questões interiores. É a impossibilidade de experienciar a serenidade e a quietude de estar consigo mesmo e deliciar-se com a companhia mais sincera que pode haver.

         Tolos aqueles que alegam que solidão é depressão e escuridão. Perspicazes aqueles que, ao contrário, encontraram-se em si mesmos e descobriram que a solidão, na verdade, é a fonte da iluminação. Virtuosos aqueles que amam-se e não mais tentam evitar a si mesmos. O relacionamento interpessoal é enriquecedor, é verdade. Mas o real engrandecimento ocorre quando aprende-se a conviver consigo mesmo.

          Na contemporaneidade, aparências valem mais do que essências. Sob esta lógica, o dispêndio de energia direcionado ao interior não é reforçado. Sendo assim, não é raro encontrar aqueles que fogem de si mesmos e para os quais o maior estranho vive dentro de si. Também não é difícil decifrar o comportamento de alguém que acua-se atemorizado diante da possibilidade de almoçar sozinho. Ele está, muito provavelmente, apavorado demais com a idéia de passar tempo com seu maior desconhecido: si mesmo.





sábado, 1 de dezembro de 2012

Loucos, ou só estão cercados de idiotas?

         
         A sociedade, via de regra, é indelével em marginalizar e subjugar aqueles que não estejam alinhados às suas formas de conduta dominantes. São os “estranhos”, os “loucos”, os “chatos”, descrevem os perfeitamente ajustados. Independente do termo que escolhem, todos eles denominam, dentre inúmeros exemplos, aqueles que não pulam carnaval; que não assistem novelas; que dispensam uma partida de futebol; que conseguem economizar, mesmo ganhando pouco; que sabem – e gostam de – contemplar a solidão; que preferem ficar na cidade do que passar o feriado – quase sempre chuvoso - no litoral e passar mais tempo em filas do que efetivamente no mar; que preferem ficar “cuidando das bolsas” à dançar músicas sofríveis em festas bregas; que não curtem os artistas medíocres e efêmeros que estão “bombando”, cujas carreiras duram menos do que qualquer romance entre celebridades.


           O conceito de comportamento desviante só é possível a partir de seu contraponto, isto é, o conceito de normalidade. Este, por sua vez, é inegavelmente construído de acordo com o contexto histórico/social/político/econômico.

Ora, o padrão de beleza feminino, há poucos séculos, era ser gorda. A atitude louvável de um jovem rapaz, há poucas décadas, era continuar ajudando sua família com o trabalho na lavoura. Hoje, é sair de casa para estudar Direito, Engenharia ou Medicina.

O padrão de beleza feminino na Idade Média e hoje: quem seria o louco em cada época?

    Pois pergunto-me: como acatar o conceito de “esquisitice” criado por uma sociedade cuja própria sanidade é questionável? Uma sociedade egonarcísica, que não tolera os que tentam passar despercebidos; que recrimina os calados e vangloria os que não param de falar e, ao mesmo tempo, não falam coisa alguma; que é incapaz de contemplar a música, não a utilizando para um fim em si mesma, mas sim como mera trilha sonora de cachaçadas e “pegações”; que tenta ensinar respeito e igualdade, mas até para escolher cachorros se baseia em beleza e raça.


          Uma sociedade cujos jovens reclamam não conseguir um bom emprego por não falarem inglês e não terem dinheiro para fazer tal curso, mas que pagam o equivalente para freqüentar a academia de musculação; cujos pais presenteiam suas filhas de 08 anos de idade com um par de salto alto, e as de 18 com um par de silicone.

          Uma sociedade de pessoas que se enchem de drogas e entorpecentes, mas continuam vazias; que bancam maravilhosas viagens à praias paradisíacas e se fotografam em meio a virtuosos monumentos históricos, mas continuam pobres culturalmente; que compram uma televisão de LCD de 40 polegadas para assistir “Domingão do Faustão”; que trocam de carro todo ano, mas que não conseguem pagar o IPVA; que tentam aplacar a angústia – física ou mental – com medicamentos que amortecem os sentidos e o saber; que envelhecem suas peles com exposição solar – real ou artificial – excessiva e, anos depois, correm atrás de tratamentos dermatológicos rejuvenescedores; que tem na televisão seu maior ditador de opiniões, gostos e comportamentos, sem ao menos perceber; que escondem seu verdadeiro eu atrás de máscaras para não sofrerem retaliações; que casam-se sem amar pois “chegou a hora”.

          Cada sociedade, cada século, cada paradigma, enfim, elege seus loucos. Em qualquer um destes contextos, entretanto, mudanças e progressos sempre foram possíveis graças àqueles que ousaram pensar “fora da casinha”, que não se acomodaram ou se conformaram com o que quer que seja.

          Pois se você é um estranho, louco, chato, regozije-se! Como perfeitamente esclareceu o pensador indiano Jiddu Krishnamurti, “não é sinal de saúde ser ajustado a uma sociedade profundamente doente”.



sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Quando é o desejo feminino que está em pauta

          É muito fácil irritar um homem: domine o controle remoto da televisão, obrigue-o a se alimentar apenas de arroz integral e hortaliças, impeça-o de assistir à final do Brasileirão. Mas nada é tão eficaz quanto contemplar imagens de homens sensuais.

Homens saindo deste blog em 3,2,1...


Um Gianecchini incomoda muita gente.






Muitos homens escondem que curtem a banda Skid Row porque o vocalista Sebastian Bach era considerado um símbolo sexual.

Nenhum homem tolera brincadeiras como essa em sua página inicial do facebook.


         Os homens demonstram extremo desconforto quando algum instrumento de comunicação, por alguma razão, coloca o desejo feminino em evidência. Propagandas de cueca, galãs de novela, cantores considerados símbolos sexuais os embaraçam e irritam sobremaneira.


É assim que a banda toca. Às avessas.


          As imagens acima incomodam os homens. Em outras palavras, eles se sentem desconfortáveis quando é o desejo feminino que está em pauta. Mas a questão é: é desta forma que a sociedade se orienta, porém ao contrário. É sempre o desejo masculino que está em evidência. Deparar-se com fotos como as acima, porém ilustrando a beleza feminina, faz parte do dia-a-dia das mulheres.

          As mulheres são obrigadas a conviver com a exploração de sua imagem, cuja finalidade é tão somente satisfazer os desejos sexuais masculinos, nas mais diversas formas de expressão cultural. Capas de revistas, aberturas ou o próprio conteúdo dos programas de televisão, propagandas turísticas, calendários, etc. Pense no que quiser: quase tudo é, de alguma forma, orientado ao desejo masculino. Quase tudo é feito pelos homens, para os homens.


Sites sérios como o Portal IG informam sobre os destinos turísticos que abrigam mulheres bonitas. Mulheres, não esperem que façam o mesmo por nós.



Aquelas bailarinas são relevantes para alguma outra coisa além de servir como objeto sexual?


Comerciais de cerveja são descaradamente direcionados aos desejos sexuais dos homens, independente do fato de as mulheres também consumirem o produto.




Até as aberturas de alguns programas se preocupam em atender aos desejos masculinos.

         Alguém já viu alguma matéria sobre os destinos turísticos com os homens mais bonitos? É claro que não. Isso interessaria às mulheres e o que elas desejam nunca está em pauta. O que importa, e sobre isso há várias matérias, é descobrir os locais onde as mulheres são bonitas. Porque, claro, o que importa é o que é bom para os homens, sempre.

          Desconheço o homem que permita que sua esposa ou namorada visite sites de fotos sensuais masculinas, ou que não a interrompa por contemplar imagens de homens belíssimos sem camisa. Em contrapartida, os homens sentem-se no direito natural, quase divino, de se reunir com os amigos para jogar truco usando baralho com fotos de mulheres nuas; assistir a programas chulos que camuflam sua pornografia barata como sendo “humor” (Pânico na TV, Zorra Total e afins); assinar (!) Playboy, sem a menor angústia. “Eu gosto disso e ela tem que aceitar”: não é assim que a maioria deles pensa?

          Mesmo as revistas de nu masculino são feitas para homens (gays). Nem nestes casos a mulher é atendida. Ela não é o público-alvo, e é evidente que o desejo feminino não é o foco da revista. Seu desejo sexual simplesmente não interessa à indústria de entretenimento.

          Muitos defendem –usando um pueril reducionismo biológico - que revistas do gênero não são feitas especialmente às mulheres pois elas, naturalmente, não se estimulam por instrumentos meramente visuais. Por que é tão difícil cogitar a hipótese de que isso poderia ser apenas mais uma construção social, já que esse estímulo nem sequer é oferecido? Como afirmar com tanta convicção que a demanda feminina por isso é inexistente ou é desprezavelmente pífia, se o produto ainda nem existe?



Mais uma vez, isso é destinado aos homens.
   
          É evidente que não pretendo que os homens passem, juntamente com as mulheres, a serem reduzidos a um mero objeto sexual. Tampouco planejo que tal redução passe a ser aplicada apenas a eles, e não mais às mulheres. Não defendo que a solução seja trocar o sujeito da exploração midiática no que concerne à sexualidade. É plenamente possível contemplar a beleza e a sensualidade sem cair num exagerado reducionismo sexual. Ademais, a questão primordial é que o direito e as opções para o exercício da sexualidade são desiguais.

Aos poucos elas começam a serem ouvidas.

          Muitos ainda podem alegar que já há, sim, razoável ênfase na vaidade masculina. Sendo assim, os homens estariam começando a se preocupar com o desejo da mulher e fazer sacrifícios – em sua aparência e comportamento - para atendê-lo.

          É um fenômeno crescente, de fato. Contudo, são apenas gotas desorientadamente espalhadas em um imenso oceano; um oceano orientado a atender tão somente ao desejo masculino. Tal é a razão para os homens ficarem tão alvoroçados quando um homem sensual está em evidência. Eles estão (mal) acostumados demais a ter a sociedade sempre mantendo seus desejos em foco. 

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Meu sonho de ser aeromoça



A primeira profissão que quis ter, ainda quando criança, foi a de comissária de vôo. Abandonei a idéia conforme fui crescendo, mas no fundo sempre mantive a mesma atração por este trabalho. Na verdade, até hoje, quando me deparo com um destes profissionais, sinto um friozinho na barriga. É, deve ser amor.
A mulher e o mercado de trabalho nos anos 80 e 90

Minha infância se passou no final dos anos 80 e início dos 90. Apesar de ter tido uma mãe bem sucedida profissionalmente, muitas meninas da mesma idade ainda tinham mães donas-de-casa naquela época. Na mídia, especialmente nas telenovelas e comerciais, a imagem que se passava ainda era a de que as mulheres eram românticas, sonhavam com um marido (“bom partido”, de preferência), de que o ápice da vida de uma mulher seria o dia de seu casamento, de que eram elas as responsáveis pelo lar, etc.
Já era uma época em que as mulheres não enfrentavam relutância da sociedade em trabalhar fora –salvo em certas profissões – mas suas atividades profissionais ainda eram encaradas como sendo de menor relevância e direcionadas para ocupações consideradas “femininas”: subalternas, de baixa remuneração e geralmente ligadas a atividades de afeto. Não preciso lembrar que até hoje as meninas são direcionadas para as áreas que não envolvem raciocínio lógico e liderança.
De todo modo, os valores familiares ainda pregavam que o chefe da família era o homem; que quem “botava comida na mesa” era o marido; que a mulher, se trabalhasse, visava apenas ajudar nas despesas da casa. Daí obviamente surgia a noção, na mente das próprias mulheres, de que prescindiam de um emprego que exigisse grande responsabilidade ou grande remuneração. Poderiam ser secretárias ao invés de executivas, professoras primárias ao invés de professoras universitárias, enfermeiras ao invés de médicas...comissárias de vôo ao invés de pilotos.

Ser ou não ser comissária de vôo: eis a questão.
Aos 19-20 anos, já universitária, vivi um momento muito difícil, de muitas dúvidas, pois não me identificava com a profissão que havia escolhido. Cogitei largar tudo e fazer o que sempre amei, desde os 7 anos de idade: ser comissária de vôo.
       Foi quando finalmente procurei uma escola profissionalizante que desisti da idéia. Os homens iam até aquele estabelecimento para aprender a pilotar aviões. Eu, como mulher, estava indo para aprender a servir passageiros e tripulantes. Dentro do avião, os homens eram pilotos; as mulheres, as “mocinhas bonitas” que serviam as pessoas. Era um sentimento contraditório aos meus ideais feministas.  


Após muita reflexão, percebi que o que eu queria mesmo era trabalhar em escritórios, mexer com computador e papéis. Eu queria ser executiva! Como não tive muitos modelos de mulheres assim em minha infância, principalmente pela televisão, o que mais se aproximava disso era a imagem de comissária de vôo. Esteticamente, elas parecem mulheres de negócios. Entretanto, a falta de modelos me impossibilitou sequer cogitar esse desejo.

Comissárias de vôo e mulheres de negócios: não são parecidas?
O problema não é escolher uma profissão subalterna. O problema é escolher algo porque se é homem ou mulher.
Quero deixar claro que de forma alguma desmereço a importância das professoras primárias, enfermeiras ou secretárias. Todas as ocupações são importantes e gozam de grande mérito. O que coloco em questão é que existe uma incontestável estereotipia sexual de profissões, e muitos homens e mulheres ainda escolhem suas carreiras em função de códigos sociais e estereótipos de gênero.
A própria profissão de comissário de vôo é um grande exemplo. É uma profissão tão sexualizada, no sentido de generizada (gendered), que até pouco tempo atrás era uma ocupação quase que exclusivamente feminina. Felizmente, a flexibilização das diferenças de gênero possibilitou que muitos homens adentrassem no ramo. Isso afetou até a denominação do cargo: passou a chamar-se “comissário (a) de vôo”, e não mais “aeromoça”.
O perigo da sexualização de profissões.
Muitas mulheres ainda não ousam enveredar pelas ciências exatas, mesmo tendo habilidade para tal, por não se sentirem pertencidas àquele universo predominantemente masculino. Muitas se contentam com o curso de Secretariado Executivo, quando na verdade poderiam ter sido grandes empresárias e gestoras. 
Em contrapartida, a educação dos meninos os afasta de ocupações com pouco prestígo social e baixa remuneração. A sociedade rechaça os homens que não correspondem ao ideal masculino de sucesso: rico e bem sucedido. Tendo isso em vista, muitos homens amam a arte, mas optam pela carreira de Direito que a família tanto espera. Muitos seguem infelizes na profissão de médico, pois na verdade desejavam ser biólogos. Outros tantos cursam Engenharia, mesmo sem talento algum, apenas em função da identificação de gênero (Parece brincadeira, mas muitos ainda seguem a lógica: “Sou homem. Logo, serei engenheiro”). 

Ser médico ou biólogo? O status social conferido pela profissão de médico certamente pesará na escolha dos homens.

Identificações e estereotipias de gênero sempre haverá. Todavia, o que espero é que sejam reduzidas ao máximo, especialmente no que tange às ocupações profissionais. Só assim não veremos mais o simples fato de ser homem ou mulher restringir escolhas, sobretudo as profissionais. Só assim não veremos mais sonhos impedidos, desejos reprimidos, habilidades inutilizadas e talentos desperdiçados.



segunda-feira, 25 de junho de 2012

Chega de mordomias!

         


          Fico indignada quando vejo casais em que a mulher não paga nada. Desde uma bola de sorvete até a prestação da casa, tudo é responsabilidade do homem em muitos relacionamentos. Todavia, esse protecionismo que a sociedade confere às mulheres não se restringe a isso. Elas usufruem de diversas mordomias aparentemente benéficas para elas mesmas em diversos outros contextos.

          Em casas noturnas, as mulheres pagam valor de entrada inferior ao dos homens, sem contar as entradas livres. Ao contrário de ser um privilégio para as mulheres, o é para os homens, já que a intenção é disponibilizar o maior número possível de raparigas no ambiente, para que assim os homens possam escolher à vontade, tal como fazem com frutas em frutarias. A legislação de divórcio permite à mulher usufruir de pensão do ex-marido, mesmo quando têm condições  para sustentar a si mesma. Inúmeros são os exemplos.

          E isso é ótimo, não? Claro que não. O que ingenuamente soa como um benefício para as mulheres e algo que as valoriza, só, ao contrário, as minimiza. São instrumentos que as mantêm na condição de inferioridade, que as infantilizam, que as isentam de responsabilidades e deveres, que as impedem de crescer.



          O homem ter o dever de pagar a conta do restaurante, consenso ainda irrefutável para muitas pessoas, é o exemplo clássico de um ato paternalista infantilizante visto como um ”ato de gentileza e educação do parceiro” sob os olhares do senso comum. Mas é, na verdade, um ato de manter a mulher – e todas as demais mulheres, conseqüentemente – na estagnação, na infantilidade, na privação do enfrentamento de deveres e responsabilidades.


          Qualquer ser humano só amadurece quando abandona a educação paternalista que o mantém sob os domínios de uma proteção excessiva. É como o ato de educar uma criança: para permitir que nossos filhos cresçam e amadureçam, precisamos incumbí-los de responsabilidades e privá-los de medidas protetoras demasiadas. Eles devem aprender a se vestir sozinhos, fazer a própria comida, arranjar um emprego, enfrentar o mercado de trabalho, sair para o mundo, andar com as próprias pernas. Sair da zona de conforto, enfim.

          Acobertado sob uma criação paternalista e superprotetora, ninguém vai a lugar algum. Todavia, é isto que ocorre com as mulheres, porém durante toda a vida, inclusive – e principalmente - na idade adulta. Elas são resguardadas de diversas responsabilidades, sobretudo as financeiras, sob o disfarce de polidez e gentileza. O que se resguarda, na verdade, é a possibilidade da mulher crescer e exercer sua cidadania plena. Direitos iguais também significam deveres iguais. Não há bônus sem ônus.

          Mulheres, saiam da zona de conforto. Paguem a conta do restaurante, dividam a prestação da casa, façam a baliza sozinhas sem passar o volante a um homem, vão vocês mesmas até o local onde precisam ir sem esperar que o homem seja seu motorista particular. Queiram direitos e, conseqüentemente, deveres. Não queiram mordomias.


  

sábado, 26 de maio de 2012

Saúde da vaidade

É incrível como as pessoas empreendem esforços homéricos para se adequarem ao padrão de beleza vigente. Passam fome propositalmente; trocam uma lasanha deliciosa por uma porção sem graça de alface; perdem o momento de ajudar os filhos na lição de casa, mas não perdem a sessão de spinning; dizem que adorariam aprender a tocar um instrumento musical e não o fazem porque não tem dinheiro, mas pagam satisfatoriamente a mensalidade da academia.
Mas o mais surpreendente é como elas justificam tudo isso: “é pela saúde”. Ok, fazer exercícios é recomendação médica. Evitar determinados alimentos previne certas doenças. Levar uma vida saudável é requisito para a longevidade. Mas as pessoas que dizem isso são as mesmas que se orgulham do quanto beberam nas festinhas com os amigos, que fumam, que bebem muito mais Coca-Cola do que água, que usam drogas para “se soltarem mais” nas noitadas, que misturam energéticos a bebidas alcoólicas, que já deformaram os ossos dos pés por usarem salto alto indiscriminadamente, que prejudicam a pele a expondo ao sol exageradamente e sem cuidado algum, que consomem suplementos alimentares potencialmente cancerígenos para evidenciar a musculatura, que ingerem remédios emagrecedores com fórmulas mirabolantes e cheios de efeitos colaterais, que fazem sexo sem preservativo.

Isso realmente tem cara de ser muito saudável.

Os remédios emagrecedores te deixam magra, mas sem saúde nenhuma por dentro.

Montagem esteticamente exagerada, mas de fundo verdadeiro: salto alto em excesso retrai a musculatura da panturrilha, atrofia o tendão de Aquiles e pode até modificar a estrutura da coluna.

Não sei se a imagem é real, mas deu pra entender a idéia.


Ora, vocês não acham que a busca por uma vida saudável deveria envolver muito mais do que técnicas para emagrecer ou métodos para enrijecer os glúteos e secar a barriga? Tem algo incoerente aí, não? E quem disse que ser gordo é sinônimo de falta de saúde? Muitos gordos têm mais saúde do que muitas pessoas magras. Muitos gordos têm melhor índice de colesterol do que muitos homens que estão na faixa ideal de peso. Muitas mulheres magras têm anemia (pesquisas indicam que mais de 30% das brasileiras sofrem de insuficiência em ferro), problema de saúde este, dentre muitos outros, que muitas mulheres acima do peso não têm.
É evidente que não estou generalizando. Não são todas as pessoas que fazem academia ou regime que o fazem apenas por estética. Problemas de pressão alta, diabetes e obesidade são apenas alguns exemplos de como estas medidas são, por vezes, realmente necessárias. Mas é inegável que grande parte dos adeptos tem outro objetivo.
Como já disse em outro texto, não sou contra a vaidade. Não a vaidade em si, mas sim a supervalorização do corpo em detrimento de outras coisas, em especial em relação à mulher, pois é inegável a problemática de que, julga-se, nosso único poder é pela beleza e que devemos nos afirmar socialmente por este meio.
Todavia, se você quer levar uma vida focada no corpo, é um direito seu. É você quem decide. Quem sou eu para impedir? Mas seja coerente. Admita que quase tudo o que faz é puramente por estética, para se sentir adequado, para seguir a uma ditadura de beleza e para corresponder ao que a mídia e a sociedade em geral espera de você. Confesse que a saúde pouca importa. Ou então, quando alguém te perguntar porque você evita um pedaço maravilhoso de pizza "porque faz mal", mas toma shakes emagrecedores suspeitos; porque não toma refrigerante devido ao açúcar excessivo e prejudicial, mas consome anabolizantes e derivados; porque enche o corpo de substâncias ilícitas nas noitadas, mas evita uma irresistível porção de batata frita porque “fritura é nociva”, responda: “ é tudo pela saúde. Saúde da vaidade”. Será mais sincero.

terça-feira, 24 de abril de 2012

Relacionamentos por interesse. De quem?




Fiquei consternada quando me deparei com este vídeo (abaixo) na internet. Ele mostra a estratégia de um trabalhador “braçal” para conquistar uma mulher que trabalha na empresa para a qual ele está prestando serviço. Cansado de ser desprezado pela moça, ele aluga um BMW, compra roupas caras e consegue chamá-la para sair. Ele a conquista e, no dia seguinte, enfrenta a situação estranha de se encontrar novamente com a mesma mulher, em seu trabalho, porém agora de volta a seus trajes normais.


Não é de hoje que as mulheres levam fama de interesseiras, mas isso sempre me soou como algo irreal. Primeiro porque eu, particularmente, nunca fui uma mulher interesseira. Ao contrário, eu nunca senti atração por homens bem sucedidos, “engomadinhos”, estilo executivo. Eu gosto de cara toscão mesmo. É, daquele tipo que chega em casa todo sujo segurando uma caixa de ferramentas.
Em segundo lugar, eu nunca fui amiga de mulheres interesseiras. Sempre procurei estar ao redor de mulheres inteligentes, independentes, e que, se almejam algo, vão atrás por si próprias, e não através de um homem. Sendo assim, esse assunto sempre foi muito alheio às minhas experiências de vida.

“Bom partido”, pra mim, é o cara da direita e abaixo: o personagem “faz-tudo e pobretão” interpretado por Kurt Russell em “Um Salto para a Felicidade”.


Interesseira pela educação machista ou por psicopatia mesmo?
Acredito que existam dois tipos de mulheres interesseiras: aquelas que até gostam do cara, mas que consideram um complemento que ele ganhe bem. Resguardam sentimentos verdadeiros de amor e afeto pelo companheiro, mas esperam que seja ele quem compre a casa, o carro, que pague o IPVA, etc. Algumas até esperam que ele já tenha tudo isso antes de começar a namorá-lo. O salário dela (se houver), fica reservado para as coisas mais superficiais.
Embora seja uma atitude repulsiva, é compreensível - o que não quer dizer justificável. A educação que se dá às meninas, ainda, é de que o maior objetivo de vida é conseguir um marido bom partido. Mesmo as que são incentivadas a estudar e a trabalhar, ouvem, por seus mais diversos vínculos sociais, que quem põe comida na mesa, mesmo, é o homem; que é responsabilidade dele prover a família; que é ele quem deve ganhar mais; que é culpa dele se o casal não pode levar o padrão de vida desejado.

        Digo que isto é compreensível, porém não justificável porque, mesmo recebendo tal educação, todos têm o poder – e dever – de transgredir, de desenvolver um senso crítico para questionar os valores que são passados e assim fazer o que é certo e justo, e não o que é conveniente. Isto é, por mais que estas mulheres ajam de tal forma por falta de orientação e falta de esclarecimento feminista, não posso perdoá-las porque supostamente seriam meras vítimas. Elas sabem muito bem o que estão fazendo e estão cientes do prejuízo disso para a própria condição social da mulher em geral (se elas mesmas esperam que o homem ganhe mais, quem irá lutar contra o preconceito de gênero no mercado de trabalho e contra os salários desiguais?).
            Eu mesma tive uma educação machista. Sim, daquelas que prega que a mulher faz a comida e lava a louça enquanto o homem fica coçando o saco assistindo futebol; que eu devo estudar e crescer profissionalmente, claro, mas que meu marido deve ganhar muito mais do que eu; que mulher que sai com muitos caras é “piranha”, mas o homem que faz isso é um garanhão sortudo, etc. Não preciso dizer o quanto eu saí pela tangente destes valores, felizmente!


Exemplo de homem “estilo filho da puta deputado” que minha família quer que eu namore. Vão ficar querendo.

O segundo tipo de mulher interesseira é aquele em que o desejo pelo homem é tão falso que beira a psicopatia. São os casos de relacionamentos que se mantêm meramente por interesse financeiro. São geralmente mulheres belíssimas com homens horrorosos.


Tenho a leve impressão que ele é rico. Posso estar enganada.

Tenho certeza de que a beleza interior é o que une este apaixonado casal.




O fato de eles serem ricos é mera coincidência, né não?



Ana Furtado e Boninho: ela, linda; ele, feio, escroto e ainda por cima diretor do BBB. Ou seja, porcão na enésima potência.
Ora, alguém me explica o que uma mulher linda e doce como a Ana Furtado está fazendo com o Boninho, um homem tão nojento que dá até ânsia de vômito? Manter um relacionamento amoroso – ou apenas sexual – com um homem apenas por dinheiro é tão frívolo, tão leviano, tão dissimulado, que beira a psicopatia.
Relacionamentos ganha-ganha
Da mesma forma que no mundo corporativo existem as tais negociações ganha-ganha (win-win negociation), isto é, em que ambas as partes tiram grande proveito de determinado acordo comercial, tal lógica se repete no mundo dos relacionamentos. Nos relacionamentos ganha-ganha, cada parte leva o que quer: ela, presentes caros, carros importados, mordomias; ele, sexo.
Mulheres interesseiras existem, sim, não vou negar (embora não façam parte de meu meio social). Mas da mesma forma que eu não convivo com elas, os homens também poderiam não fazê-lo. Existem inúmeras mulheres não-interesseiras e que desejam conquistar bens materiais e imateriais por si próprias. Se os homens queixam-se de só encontrarem mulheres interesseiras, é porque estão procurando nos lugares e circunstâncias errados. Pior: estão procurando as pessoas erradas.

O interesse é só da mulher?




Ele também não é santo.
 
Ao ver a foto acima, por exemplo, todos centram-se no fato de que “ela é uma vagabunda que está com ele apenas pelo dinheiro”. Mas ninguém se atenta ao fato de que ele é tão superficial e interesseiro quanto ela. Ele também só está com ela por um motivo: seu corpo e os prazeres sexuais daí advindos.
Nunca irei defender as mulheres interesseiras. Elas ferem a imagem de todas as mulheres, e não só a delas mesmas. Ou alguém tenta defender que tal mulher é interesseira “porque é capricorniana”, “porque é irmã caçula” ou “porque adora sorvete”? Não, ao contrário, a justificativa é sempre “porque é mulher”. Sendo assim, é um julgamento que se faz a todas as mulheres indiscriminadamente e que afeta todas elas, mesmo as que nao têm nada a ver com isso.
De todo modo, também não aceito ver homens igualmente superficiais e interesseiros se fazendo de vítima. Os homens que se envolvem com elas sabem muito bem onde estão pisando, com quem estão se metendo. Eles estão com elas porque querem, porque também têm algum ganho nesse tipo de relacionamento. Estar perto delas é, portanto, uma questão de escolha.
É como diz um ditado moderno que corre nas redes sociais: “Mulheres que escolhem os homens pela carteira não podem reclamar de serem tratadas como mercadoria”. Não poderia concordar mais. Todavia, ele merece um complemento: “Homens que escolhem as mulheres pelo tamanho da bunda também não podem reclamar de serem tratados como uma mera carteira”.