quinta-feira, 18 de junho de 2009

Mulher e machismo: Ela é vítima ou colaboradora do sistema?

Existe uma pluralidade de abordagens filosóficas e psicológicas e muitas vezes acontece de umas serem epistemologicamente incompatíveis com as outras. Pensando no feminismo, há diversas correntes de pensamento que o abarcam. Algumas vinculam-se ao marxismo, ao vegetarianismo, à defesa animal e do meio-ambiente. Algumas adotam uma postura anti-pornografia; outras não fazem ressalvas contra ela, e assim por diante.

Algumas dessas correntes do feminismo, fazendo jus à diversidade de abordagens e embasamentos filosóficos, encaram a mulher como vítima de um sistema patriarcal e coloca o gênero masculino como o maior inimigo das mulheres. Minha opção de pensamento, entretanto, é vincular o feminismo ao existencialismo sartreano.

Embasando-se nessa abordagem temos que, o ser humano, condenado a ser livre, é responsável por seu projeto de vida, pelo significado que dá a sua existência, pela responsabilidade que assume diante de suas escolhas. Eximir-se da responsabilidade de seus atos, viver conforme o desejo do outro, desculpar sua situação diante das circunstâncias da vida, é agir de má-fé e negar sua liberdade. O discurso de vítima é, portanto, um discurso de má-fé.

A dominação baseia-se fundamentalmente em dois elementos: o dominador e o dominado, ambos sendo condições para a existência do outro. O discurso de vítima, portanto, não apenas nega o segundo elemento do processo de dominação, que é a abertura do dominado para se permitir existir como tal, como nega a liberdade humana.


A consciência é liberdade e é também, acima de tudo, possibilidade. Ela está disponível a todos, basta se permitir perceber que existe um mundo enorme fora do nosso próprio, no qual existem múltiplos valores com os quais nunca nos deparamos. Existem, certamente, instituições sociais que dificultam a percepção de que nosso mundo não é o único, mas, ainda assim, não somos obrigados a pensar de tal jeito. E nisso se baseia a escolha. A escolha é a premissa da liberdade, e mesmo que não estejamos escolhendo por alguma coisa, o não-escolher já é uma escolha. Portanto, o que somos é tão somente o que queremos ser. Não importa se o outro nos impõe algo, o que importa é o que fazemos com essa imposição.


Então, ao invés de abraçar teorias que me conferem um papel vitimizado diante das circunstâncias da vida e, portanto, um papel de sujeito determinado a partir de variáveis que me julgam incapazes de manipular, subjugando, assim, minha capacidade de escolha e meu livre-arbítrio para ser um sujeito ativo na própria construção de meu sujeito, me identifico, isso sim, com uma abordagem que me trate como um sujeito empoderado, com capacidade de subverter o que é dito ideal, uma abordagem que me encara como um sujeito que é capaz de causar mudanças, de negar os valores vigentes e, portanto, capaz de agir.

Acho uma pena que muitas mulheres (e muitas feministas também) continuem se apoderando do discurso de vítima e da fórmula simplista que explica todo o machismo pela máxima “a mulher é oprimida pelo homem opressor”, atribuindo única e principalmente à vontade masculina a responsabilidade pela manutenção do sistema. Encarar o homem como o ator mantenedor e único beneficiário dessa estrutura é simplista, ingênuo e cômodo. (Não é à toa que muita gente por aí pense que as feministas são “mulheres que odeiam homens”.) A todo momento percebo essa visão de que “é o homem que causa e mantém todo o machismo que há no mundo”, transformando a luta feminista numa luta, acima de tudo, das mulheres contras os homens. E não é por aí. E seria até bom e mais fácil se fosse tão simples assim.

Pensar que as mulheres são oprimidas e escravizadas por um sistema, totalmente alheio a sua vontade, criado por indivíduos que as execram e querem apenas sua subjugação e aniquilar a todo custo sua condição de sujeito ativo é ingênuo porque pressupõe que as mulheres não têm nada a ganhar com o machismo e o patriarcado.

Muitos homens são machistas porque as mulheres assim o exigem. Muitos não se apropriam de atitudes ou valores machistas porque acham que são superiores a nós e que devem nos dominar, mas, sim, porque, se não agirem assim, as mulheres não dão crédito a eles. Por exemplo: muitos homens discordam da cultura segundo a qual o homem deve pagar a conta em todas as situações. Mas estes homens muitas vezes acabam pagando porque sentem-se inseguros de sugerir a divisão e, assim, a mulher o julgar mal. Para muitas mulheres, o homem que não paga é mal visto, mal educado, “pão-duro”. Muitos homens já tentam romper com essa norma, mas quem a mantém são as mulheres que a reforçam e a exigem.

Da mesma forma que, se criticamos os homens que acham que tem que reproduzir o papel de “pai de família que dá segurança financeira para a mulher”, muitos o fazem porque, se não o fizerem, não despertam o interesse das mulheres. Os estudantes de medicina, de Engenharia, etc, são os mais cobiçados pelas mulheres. Eles são notavelmente mais cobiçados do que os homens que fazem cursos sem status social, ou seja, cursos que não lhes conferem o papel de homem provedor. Portanto, se muitos homens fazem questão de assumir esse papel de patriarca é porque isso lhes confere muito mais atração por parte das mulheres.

Inúmeros são os exemplos de como as mulheres contribuem para a própria estagnação social. Elas são, resumidamente, desunidas, cada uma tentando destruir a outra, sem convergir para um objetivo em comum. Enquanto há mulheres que querem estudar, trabalhar, e assim crescer profissionalmente, muitas acham que esse caminho pode e deve ser facilitado tendo um caso com o chefe; enquanto umas tentam se inserir social e profissionalmente pelas habilidades intelectuais, muitas fazem questão de ser mulher-objeto, de conseguir as coisas pelo corpo e pela beleza; muitas ainda reforçam a divisão sexual dos papéis, acreditando que papéis dicotômicos de gênero devem corroborar com os determinismos biológicos; muitas fazem questão de negar sua individualidade e até mesmo etnia transformando seu corpo a cada moda que aparece para se adequar ao padrão de beleza vigente, passando fome para emagrecer, fazendo cirurgias plásticas desnecessárias que a mídia propõe que necessitam, etc; muitas acatam, mesmo que passivamente, a cultura que institui que a beleza é a maior fonte de realização e felicidade de uma mulher, o que obviamente impede um desenvolvimento intelectual, físico e social pleno; muitas aceitam ou simplesmente não repreendem comportamentos machistas; muitas aceitam menores salários pois acreditam que “para uma mulher, está bom”; dentre muitos outros casos.


Num outro contexto histórico e sócio-político fomos vítimas, sim. Éramos proibidas de estudar, de votar, éramos proibidas por lei de ocupar determinadas profissões, éramos obrigadas a casar com quem não queríamos e ter filhos incessantemente pois, dentre outros motivos, não existiam pílulas anticoncepcionais, etc. Mas essa forma de opressão, declarada, pautada em normas legislativas, cuja subversão acarretava punições evidentes, não existe mais (ao menos no Brasil). Existem ainda, obviamente, regras simbólicas nesse sistema machista e patriarcal da atualidade, mas a peculiaridade de tais regras é que, embora sejam mais difíceis de perceber (pois, ao contrário das regras legislativas, são invisíveis, não há um estatuto em que elas estão escritas), elas são mais passíveis e flexíveis de se burlar.
Diante desse cenário, pouco importa se são os homens que criam as situações e os valores machistas se nenhuma mulher se levanta pra repreender. A maioria prefere pensar “homem é assim mesmo, o mundo é assim mesmo, então vou aceitar mesmo”. Não podemos esperar que os homens saiam imediatamente da zona de conforto que o machismo lhes confere (com exceção dos homens que sofrem com o sistema, uma vez que os homens que discordam de tais valores são também discriminados de inúmeras formas). Mas podemos, isso sim, esperar que as mulheres estejam lá pra serem as primeiras a repreender qualquer tipo de comportamento machista. Não repreender um comportamento tem o mesmo efeito de reforçá-lo. Dessa forma, qualquer omissão de posicionamento, por parte de uma mulher é, na verdade, uma forma de promover o sistema.

Tocar no ponto da responsabilidade feminina na manutenção do sistema machista enfurece muitas mulheres, incluindo muitas feministas, talvez porque faça avistar um novo paradigma, um paradigma em que a mulher também é atriz mantenedora do sistema e, por isso, detém sim o poder da mudança. Mas esse novo paradigma talvez seja rechaçado porque incomoda. Incomoda porque pressupõe que estamos com muito poder nas mãos, mas não estamos sabendo usá-lo.