domingo, 20 de novembro de 2011

Mulher não toca guitarra

 
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            Há pouco mais de 6 meses realizei um de meus grandes sonhos: comprar uma guitarra.  Finalmente, aos 25 anos e com independência financeira, pude começar a aprender o instrumento com o qual sonho desde os 10 anos de idade.  Apesar dos altos investimentos de dinheiro e tempo que este instrumento exige, a única coisa que me arrependo é de não ter feito isso antes.
                        Esses dias tive que ouvir de um cara a dúvida se eu estava aprendendo a tocar “direito” já que, nas próprias palavras dele, mulher não tem talento para guitarra. Disse que até podem existir algumas mulheres guitarristas razoavelmente boas, mas “fodas” como Steve Vai e afins, não. "Falta-lhes algo. Falta ´colhões´", resumiu.
                        O motivo, para ele, é que algumas habilidades são inerentes ao sexo masculino e feminino e, assim como os homens são indubitavelmente superiores às mulheres no que tange à força física, por exemplo, o seriam também na guitarra (assim como bateria e baixo, ainda defendeu) por motivos biológicos (Claaaro! Tudo no mundo se resume a fatores meramente biológicos e fatores histórico-culturais são totalmente irrelevantes, né gente?!). Ele legitima sua teoria a partir do fato de que conhece muitos bons guitarristas homens, mas nenhuma boa guitarrista mulher. Aponta sua posição como sendo uma conclusão natural do que percebeu de suas experiências pessoais e história da música. Nada de ser um conceito pré-determinado ou machismo, defende-se.

Mulher não leva jeito para guitarra porque os bons guitarristas sempre são homens

                        Ora, a primeira questão é: QUANTAS guitarristas mulheres existem? E quantos guitarristas homens? Não é meio óbvio que na amostra maior iremos encontrar mais facilmente o que estamos procurando justamente pelo fato da amostra ser maior? Em outras palavras: não é óbvio que, se existem 300 guitarristas homens para cada 5 guitarristas mulheres, os “bons” provavelmente estão na amostra maior, de homens? E olha que eu boiava nas aulas de análise probabilística.
            Os filmes mais premiados são sempre americanos e não búlgaros porque estes não sabem fazer filme ou porque a esmagadora maioria das grandes produções cinematográficas vem dos Estados Unidos? A maioria dos enfermeiros tem olhos castanhos porque pessoas de olhos castanhos se adéquam mais ao ofício da enfermagem, ou será que é porque quase todo mundo (aqui no Brasil) tem olhos castanhos e, conseqüentemente, estes serão maioria na profissão? Resumindo: Todo guitarrista bom é homem porque as mulheres não levam jeito, ou será que é porque...vejamos...elas nem tocam guitarra?!

Mulher não combina com guitarra

            Para analisar isso, é imprescindível discutir o contexto sócio-cultural que provoca o distanciamento das mulheres em relação ao rock ‘n’ roll. Desde pequenas nos ensinam a sermos meigas, resignadas, a ter limites e restrições, sermos doces e bonitas. Isso já bate de frente com a atitude rock ‘n’ roll, que sugere justamente o oposto: a subversão, o criticismo, a atitude. Nós aprendemos que devemos gastar nosso dinheiro com maquiagem, e não com tarraxas e cabos! Então como esperar que existam várias mulheres guitarristas excepcionais, se a maioria delas nem pensa em tocar esse instrumento?
            Temos ainda que, como a esmagadora maioria dos músicos roqueiros são homens, é difícil para as mulheres se identificarem com o estilo pois não se sentem representadas, não se sentem pertencidas. É um sentimento inconsciente de “isso não me diz respeito”. A identificação de gênero é fortíssima, por isso as mulheres – e vice-versa - sempre irão se identificar com coisas feitas por mulheres e para mulheres (pagode pode ser feito por homens, mas é especialmente para mulheres).  É a mesma coisa quando éramos crianças e assistíamos aos filmes da Xuxa e convidados especiais. Com quem as meninas se identificavam? Com a Xuxa ou com o Sérgio Malandro?!


Nossas experiências pessoais e a história da música comprovam que a mulher não leva jeito para tocar guitarra
           
            Ora, se isso é legítimo, também o é afirmar que os brancos são mais inteligentes que os negros porque nunca os vemos passarem em primeiro lugar nos vestibulares. Aliás, antes do sistema de cotas, mal os víamos passando nos vestibular, sejam em que colocação fosse! Mas ei, não é preconceito! Foi minha experiência pessoal que demonstrou isso!
            Você não iria se safar no tribunal com uma dessas, iria? E por quê? Porque dizer que os brancos são mais inteligentes que os negros em decorrência do fato de que aqueles sempre conquistam os primeiros lugares (ou qualquer lugar!) é desconsiderar todo o contexto histórico/político/cultural que criou esse cenário. Tal cenário, que é o que “a experiência pessoal” nos mostra, é a conseqüência de vários fatores, e não a causa.
            Ainda seguindo o mesmo raciocínio, também poderia dizer que os negros nunca tiveram grande relevância para o mundo, pois os avanços, criações e descobertas na história sempre foram feitos por brancos. Existiram alguns negros relevantes, mas a esmagadora maioria das pessoas que ficaram para a história foram brancos. Logo, a história está me dizendo que os brancos são melhores. É um fato! Não é preconceito! 
            Esta pessoa – um cara que, aliás, é mulato –, além de dizer que essa comparação é distorção de sua opinião (e não o é de forma alguma. É, no máximo, uma extensão, um deslocamento de sua própria teoria), ainda teve a cara de pau audácia de argumentar que o motivo pelo qual a quantidade de negros “fodas” da história é bem menor que a de brancos “fodas” seria porque os brancos são a maioria da população mundial (!!). Claro! O fato deles terem sido escravizados por séculos e terem adquirido direitos políticos - quem dirá os simbólicos!- há poucos anos é só mera coincidência, não é mesmo?!

Mulher não serve para guitarra, até que me provem o contrário

            A pessoa defendeu que até poderia mudar de opinião, desde que alguma mulher provasse que é boa. Ora, você não se torna menos preconceituoso por estar disposto que te provem o contrário do que você acredita. A necessidade de provar que se é bom – seja para os outros ou para você mesmo – já subentende a premissa de que você não é bom. Eu precisar provar que toco guitarra bem já implica dizer que mulher não toca guitarra bem só por ser mulher.

Mulher, negro, anão, [adicione aqui quem vai discriminar] não serve para [adicione aqui o que só os homens brancos fodas sabem fazer bem]. Inclua fatores biológicos para validar sua teoria.

            Nunca vi um gerente anão. Posso defender, então, que os anões não servem para ocupar cargos de liderança porque todos os gerentes que conheço não têm nanismo. Foi minha experiência pessoal que me mostrou isso. A história da humanidade me mostrou isso. Os anões nunca fizeram história. Logo, se um anão se candidatar à vaga de gerente em minha empresa, posso até contratá-lo, mas mediante a condição que ele (ou qualquer pessoa pertencente a qualquer tipo de minoria) prove que é bom. Isso não é correto ou justo, então por que deveria sê-lo quanto se trata de mulheres?

            Dizer que as mulheres não levam jeito para tocar guitarra (principalmente sob os argumentos de que 1) os bons guitarristas sempre são homens, 2) a história da música comprova isso, 3) nossas experiências de vida comprovam isso) é tão abjeto quanto dizer que os brancos são mais inteligentes que os negros  e que os “não-anões” são melhores que  os anões. É só usar os mesmos argumentos. O elo de semelhança encontra-se no fato de desconsiderar os meios que justificam o fim.

O olhar sociológico sob a diferença de gênero não anula as diferenças verdadeiramente biológicas

                        Existem diferenças biológicas entre homens e mulheres? Certamente que sim. Homens são mais fortes, mais resistentes fisicamente, etc. O olhar sociológico sob a diferença de gênero não anula as diferenças verdadeiramente biológicas. Mas a guitarra, além de não exigir força física ou nada que seja inerentemente superior nos homens, é um símbolo e, como tal, repleto de sentidos e acepções. E, como símbolo, não pode ter toda sua bagagem histórica invalidada.
Não sei se um dia tocarei tão bem quanto Steve Vai ou qualquer outro “macho foda”. Mas mesmo que eu nunca toque bem, eu quero que isso seja justificado não pelo fato de que sou mulher, mas pelo fato de que sou apenas humana. Só assim a igualdade simbólica da mulher – porque igualdade jurídica já temos - vai estar de fato alcançada. O mesmo vale para qualquer outra minoria.