sábado, 21 de agosto de 2010

Jeff Blades e Tommy Shaw: por pouco se safaram do sertanejo







Confiram estes vídeos recentes do Jeff Blades e Tommy Shaw (membros do antigo Damn Yankees) tocando “High Enough”, e do Nelson Brothers cantando “Love and Affection”. As versões originais datam de meados dos anos 80/início dos 90 e são mais “pesadas” do que estas, já que nestes vídeos a reprodução é apenas na voz e violão.


Notem como, nessa forma de interpretação, as duas versões soam ao estilo sertanejo. Os refrões com notas altas, o esquema de terça e até o manejo dos vibratos gozam de uma similaridade inegável com a forma de cantar de nossas duplas sertanejas (além, claro, da semelhança inquestionável – e não coincidente- entre os vocais de Nelson Brothers com Bon Jovi!).


A questão que coloco, e que me angustia, é a seguinte: se esses caras fossem brasileiros, estariam no mesmo ramo de atuação de Edson e Hudson, Rick e Renner e afins. Ao contrário disto, como estão em outro contexto, tiveram a chance de casar seus belos timbres e invejáveis extensões vocais ao rock, ajustando tais elementos aos enérgicos arranjos de guitarra e bateria.

Isso me angustia por dois motivos. O primeiro tem a ver com a indústria fonográfica brasileira, que promove apenas o que é passível de ser enlatado e comercializado pela massa. Tendo isso em vista, muitos bons artistas ficam à deriva no mundo musical, pois não conseguem o apoio das gravadoras que, respondendo ao poder de uma indústria fonográfica tendenciosa e imbecilizante, rejeitam tudo aquilo que não se enquadre nos padrões exigidos por esta. Tal postura ainda é revoltantemente justificada pela mentira de que “é isso o que o povo quer ouvir”, como se a relação de causa e efeito fosse esta e não a contrária, ou seja, a de que “o povo acredita que é isso que quer ouvir porque são essas as (faltas de) opções dadas a eles”. É uma indústria composta por pessoas que trabalham pelo marketing, e não pela arte. O resultado é desanimador: artistas como Alexandre Pires, Bello, Calcinha Preta, Ivete Sangalo, Banda Calypso, Latino, dentre outras porcarias, imperando como as referências musicais da maioria da população. Pior ainda: NX Zero, Pitty e afins como referências de rock (?!).


Não é à toa que todos os bons músicos dos quais já ouvi falar foram para outro país tentar uma carreira musical sólida. O maior exemplo disso é o Rafael Moreira, um guitarrista paranaense (que orgulho!) que foi para os EUA e gravou até com o Paul Stanley (!!). Se ele permanecesse no Brasil, quem sabe conseguisse um contrato com o Bruno & Marrone ou qualquer dupla sertaneja, em que os instrumentistas ficam lá atrás, tocando escondidos no escuro, enquanto os mato-grossenses ficam ali na frente, cantando (ou fingindo que estão cantando, no caso do Marrone) sob os holofotes e grites histéricos dos fãs que deles facilmente esquecerão tão logo parem de tocar nas rádios. Ou talvez ainda permanecesse na realidade dos demais bons músicos que temos aqui: conquistar, no máximo, o posto de atração principal das casas noturnas nos sábados à noite.


Como a esmagadora maioria das pessoas é massa de manobra e esse comportamento, conseqüentemente, estende-se à música e ao gosto musical delas, elas compram o que quer que seja esse “produto” musical que está sendo vendido a elas. E é aí que entra o segundo motivo que me angustia. As pessoas vão ouvir aquilo que as facilita fazer parte de um grupinho (de idiotas, claro). Que graça tem uma pessoa que, quando lista seus artistas prediletos, deixa os outros com cara de paisagem diante de tantos nomes nada familiares? Para ser mais aceito no grupo, ser mais passível de identificação com os outros, ser chamado para as “baladinhas” e shows de artistas que estão fazendo o maior “S-U-C-E-S-S-O, amigaaa!”, você tem que seguir a onda – ouvir sertanejo, pagode, funk, ou seja lá qual lixo esteja na moda no momento e faça você se sentir super “in”.


Essa postura, por sua vez, reforça os mecanismos da indústria fonográfica para criar tal experimento de pessoas alienadas e imbecis, das quais qualidades como senso crítico e originalidade já se dissociaram há um bom tempo. É um ciclo vicioso: a indústria fonográfica - juntamente com sua grande aliada para a perpetuação de comportamentos patéticos, a grande mídia – imbeciliza as pessoas. As pessoas, em estado de imbecilidade, reforçam essa indústria que as deixou imbecis (comprando CD’s em cujas capas tem-se mais exploração sexual da mulher do que qualquer referência à música propriamente dita; mudando de gosto musical em função do que está em voga no momento; se interessando tão somente por aquilo que está na grande mídia; tolerando e, no pior dos casos, promovendo verdadeiras aberrações que ousam classificar como música, etc).


Certo dia encontrei o orkut de uma conhecida. No campo música, ela escreveu: “Sou muito eclética”- como se isso fosse uma virtude e não falta de personalidade -, “gosto de tudo um pouco. Mas no momento estou gamada em sertanejo”. Ora, é claro que no momento ela está gamada em sertanejo, afinal, no momento, e nada coincidentemente, sertanejo é o que está na moda. Há uns 12 anos, quando a moda era ouvir pagode, eu tenho certeza, plena convicção, mas boto minha mão no fogo mesmo, que ela dizia: “Sou muito eclética, gosto de tudo um pouco. Mas no momento estou ouvindo pagode”. Assim como ela devia fazer quando a moda era ouvir reggae (lembram no ano de 2000 e 2001, em que todo mundo ouvia Dazaranha e afins, se fantasiavam à caráter diariamente com roupas de “surfistinha” e até brincos de pena?!). É pertinente lembrar-vos ainda que, quando o sertanejo carregava consigo o estereótipo de "música de diarista", nenhuma adolescente de classe média se interessava pelo estilo. Mas é só coincidência, né?!


O que me preocupa é que sei que dá para contar nos dedos a quantidade de pessoas que não são como ela. A esmagadora maioria das pessoas pensa exatamente como ela. Dessa forma mesmo, bem caricaturizada. E pior: realmente acreditam que suas escolhas são genuinamente individuais, que estão ouvindo determinada coisa pura e simplesmente porque apreciam e que estão sempre ouvindo justamente o que está na moda “por coincidência mesmo”.


Agora questiono: se as pessoas são assim com seu gosto musical, que é algo tão peculiar de cada um, imaginem com o resto. Se permitem padronizar até o gosto musical, que é algo tão sinceramente intrínseco a cada um, tão elementar de nossa individualidade, imaginem como reagem a temas mais complexos. A postura da sociedade em relação à música é apenas mais um fragmento de sua postura em relação aos demais temas e contextos que norteiam nossa vida em grupo. Estes temas e contextos, aliás, são os que venho discutindo em meus textos.


A teoria que defendo é a de que as pessoas ouvem qualquer lixo porque não têm referências musicais. O que não tocou no Faustão ou não virou trilha sonora de novela é considerado alternativo. Como nunca foram apresentadas a coisas boas, não foram acostumadas a apreciar música (sim, música deve ser apreciada, e não apenas ouvida). Isso, como já defendi, é culpa da grande mídia e da indústria fonográfica que ganham muito (muito me$$$mo) em manter o povo na resignação e ignorância cultural.

Mas também não vitimizo as pessoas. Existem outros meios à disposição das pessoas para sair da dormência cultural (quer meio melhor para se aprofundar musicalmente do que a internet?!),basta ir atrás. Mas sair da superficialidade e da padronização tem um preço: custa ser crítico, custa sentir angústia em relação a certas coisas (se “a ignorância é uma bênção” por não trazer sofrimento, o senso crítico causa muito sofrimento aos os que têm olhos mais apurados), custa não se permitir influenciar, custa tomar atitudes com consciência e não apenas “para se divertir”. Custa, principalmente, ser diferente. E, para a maioria, esse preço é alto demais.


Certamente haverá aqueles leitores que, não convencidos da magnitude da mediocridade humana, alegarão que “grande parte da população brasileira é pobre e tem como única forma de entretenimento a televisão (quando tem)”, justificando-se, então, os repertórios tão limitados. Acontece que a questão que coloco transcende as estruturas de classes sociais. Quem está ouvindo funk, sertanejo, “bunda music” em geral, são os playboyzinhos de Audi A3, as estudantes de Medicina de universidades particulares, as adolescentes que torram suas gordas mesadas no shopping, dentre outros exemplos elucidativos.

Vivo o privilégio de me permitir ser diferente, me permitir respeitar a minha individualidade e meu gosto musical sinceramente verdadeiro, sem medo da diferença e de não atender aos padrões que me são exigidos. A sensação de adequação consigo mesmo não tem preço e é infinitamente mais gratificante do que poder trocar CD’s com qualquer um ou ser chamada para as festinhas populares. Graças a pessoas assim, pelo menos em alguns lugares um dia houve – e ainda há, embora de forma bem mais restrita – espaço para músicos excelentes como Tommy Shaw e Jeff Blades fazerem sua música sincera. Graças a pessoas assim, eles não precisaram se tornar cantores sertanejos.