terça-feira, 25 de dezembro de 2012

O mundo é o Colégio Medianeira

          Estudei todo o ensino fundamental no Colégio Medianeira, de onde saí apenas aos 14 anos. Tive uma infância feliz, mas lembro do início da adolescência como um período perturbado; é quando a personalidade começa a se consolidar, as reflexões emergem, as opiniões se formam e você começa a descobrir quem realmente é.

          Aos 9 anos de idade, o presente de meus sonhos era um autorama ou um videogame com volante, mas nunca tive coragem sequer de comentar esse desejo com meus pais porque, pensava eu, eles brigariam comigo se eu pedisse um brinquedo “de menino”. Meu brinquedo preferido, inclusive, era o Jeep da Barbie, e tenho certeza que ele me entusiasmava muito mais pelo fato de ser um carro do que por ser um acessório da boneca.

Sim, eu brincava de carrinho. Já era a feminista latente dentro em mim, revolucionando conceitos sexistas mesquinhos.

Nesta mesma idade, me inquietava o fato de aprendermos sobre a evolução humana sob o paradigma do sexo masculino; não bastasse as figuras sempre representando tão somente a evolução do corpo masculino, a denominação da espécie humana se resumia no termo “Homem”. Eu questionava porque o ensino da humanidade excluía as mulheres ilustrativa, lingüística e simbolicamente e focava-se nos indivíduos masculinos. Lembro-me de comentar com minha mãe que meu pai havia sido um homem das cavernas. Ela me corrigiu, afirmando que nós – mulheres – também havíamos sido. Ora, para uma compreensão infantil pautada em interpretações literais, meu pensamento não estava tão equivocado assim.  Simbolicamente, era isso o que ensinavam.


O ensino da evolução humana é ilustrativa, lingüística e simbolicamente masculinista.

Aos 10 anos de idade, enquanto minhas colegas ainda brincavam de Barbie, eu pedi uma guitarra para minha mãe. É claro que ela não atendeu meu pedido; ela não levou a sério um desejo que, mais de 15 anos depois, continua efervescentemente vivo e jamais morreria.
Aos 11, já possuía um vasto conhecimento musical e sentia-me limitantemente acorrentada por não poder compartilhar do meu interesse pela música com meus pares. Meus colegas não ouviam música. Não com consciência. Eram daqueles que acreditavam que o melhor disco do ano tinha sido a compilação da trilha sonora da novela das 8 e que só conheciam o que tocava nas rádios e no programa do Faustão.

          Diferente das meninas da sala, eu nunca me interessei por aqueles meninos sem graça da turma, os “galãzinhos de 12 anos”. Eu sempre gostei de homens mais velhos, intelectualmente provocantes e esteticamente perturbadores. Um de meus maiores sonhos, inclusive, era casar com o Jon Bon Jovi, 24 anos mais velho do que eu.


Eu tinha um sentimento muito certeiro, quase profético, de que eu seria a próxima esposa do Jon Bon Jovi (!).

          Meu sentimento de inadequação era marcante. Eu não me identificava com os colegas. Eu sentia falta de inquietude nas pessoas; de angústia; daquele caos interior que te move a pensar a vida de forma diferente, buscar respostas, agir criticamente sem se contentar com o que quer que seja; de ânsia por decifrar os mistérios da vida e compreender essa existência turbulenta.

          Ao iniciar o segundo grau, imaginei que seria o momento ideal para mudar de escola. Mudar de vida. Conhecer gente nova, menos previsível. Reconheço que melhorou ligeiramente, mas fundamentalmente tudo continuou igual. Fui crescendo, saindo para o mundo, me inserindo em novos contextos, entrando para o mercado de trabalho, trabalhando em diversas empresas e conhecendo todo tipo de gente. Curiosamente, tudo continuou como era no Colégio Medianeira.


          As meninas, hoje adultas, não mais desejam brincar de Barbie. Regrediram: querem ser a Barbie. Os meninos, hoje crescidos, continuam infantis: respondem a códigos masculinos medíocres e fazem o que quer que seja, até o que não desejam, para afirmar sua suposta masculinidade. Homens e mulheres permaneceram na infantilidade musical: abdicam até mesmo de seu gosto musical genuíno para serem aceitos socialmente. Não aprenderam a ouvir música com consciência e continuam acreditando que gostam daquilo que a mídia sugere que devem gostar. As meninas que naquela época ouviam pagode e axé só porque estava na moda são as mesmas que hoje ouvem sertanejo universitário pelo mesmo motivo. Naquela época, elas abominavam sertanejo porque a mídia o colocava como “música de diarista”. Mas é melhor não enfatizar este fato para que elas não fiquem sem graça. Reconhecer que se leva uma existência inautêntica é humilhante demais; é mais fácil negar e se justificar com desculpas esfarrapadas.


          As pessoas continuam padronizadas: são passivamente moldadas para pensar, agir, se vestir, se divertir e se interessar pelo que a televisão impõe inconscientemente em cada momento. Agora, no entanto, elas não têm mais a desculpa de serem apenas adolescentes. Já são adultas.

          Muita gente continua vivendo sob a proteção de máscaras, negando – para si mesmo, muitas vezes – sua verdadeira identidade a fim de aparentar estar bem ajustado à sociedade: tímidos tentando ser falsamente sociáveis e, para isso, enfrentando o doloroso desafio de viver interpretando um personagem o dia todo; pobres fingindo ser ricos; tagarelas que falam demais pois não suportam seu próprio silêncio; morenas tentando ser loiras; pessoas passando fome propositalmente para fingir que são magras.


          Hoje sei que o problema não era o Colégio Medianeira; era a sociedade. Qualquer contexto, dentro dessa mesma sociedade, seria essencialmente igual. Em qualquer canto as pessoas continuavam previsíveis, infantilizadas, moldáveis, manipuláveis. É um traço comum à maioria.


          Minhas lembranças do Colégio Medianeira são tão ruins que, logo após mudar de escola, sonhei, alguns vezes, que algo ainda me prendia lá. Eram pesadelos nos quais eu havia tido que voltar a estudar lá ou que de lá não consegui sair. Acordava aliviada lembrando que havia, sim, me libertado.

          Em essência, eu não me libertei. No mundo lá fora era igual. O mundo era como o Colégio Medianeira. Aos 14 anos, quando decidi mudar de escola, eu era ingênua e pouco ainda conhecia do mundo lá fora. Eu esperançava que qualquer outro ambiente seria melhor e tinha certeza que eu poderia me ajustar. Eu era ingênua demais para cogitar que mudar de escola não resolveria, e inocente demais para encarar o fardo que teria que carregar: durante toda a vida, eu nunca sairia do Colégio Medianeira.




sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

A arte de almoçar sozinho

         
         Se há algo que inquieta muita gente, é almoçar sozinho no intervalo do expediente de trabalho. É notável a apreensão de muitos quando a hora do almoço se aproxima. “Por favor, me espere porque vou me atrasar para sair”; “coitado do Fulano, almoça sozinho”; “não vá sem mim, já estou quase saindo”; “Fulano está em reunião, Beltrano em uma ligação e Cicrano terminando um relatório. Não acredito que terei que almoçar sozinho!”, queixam-se muitos, amargurados por um medo quase infantil.

          Tá certo, é divertido almoçar com amigos ou colegas. É agradável botar o papo em dia com aqueles que admiramos. É relaxante compartilhar momentos de lazer. O instinto gregário é traço marcante do ser humano e por isso o alegre sentimento de conforto nos devora quando estamos entre nossos pares.

          Para muitos, entretanto, o pavor da idéia de almoçar sozinho remete a um medo mais profundo e existencial: o medo da solidão. É a incapacidade de fazer as pazes com seu próprio eu, de enfrentar seus medos, de aceitar seus desejos genuínos, de reconhecer suas fraquezas. É a dificuldade de despertar para si mesmo, de atingir o esclarecimento sobre as questões interiores. É a impossibilidade de experienciar a serenidade e a quietude de estar consigo mesmo e deliciar-se com a companhia mais sincera que pode haver.

         Tolos aqueles que alegam que solidão é depressão e escuridão. Perspicazes aqueles que, ao contrário, encontraram-se em si mesmos e descobriram que a solidão, na verdade, é a fonte da iluminação. Virtuosos aqueles que amam-se e não mais tentam evitar a si mesmos. O relacionamento interpessoal é enriquecedor, é verdade. Mas o real engrandecimento ocorre quando aprende-se a conviver consigo mesmo.

          Na contemporaneidade, aparências valem mais do que essências. Sob esta lógica, o dispêndio de energia direcionado ao interior não é reforçado. Sendo assim, não é raro encontrar aqueles que fogem de si mesmos e para os quais o maior estranho vive dentro de si. Também não é difícil decifrar o comportamento de alguém que acua-se atemorizado diante da possibilidade de almoçar sozinho. Ele está, muito provavelmente, apavorado demais com a idéia de passar tempo com seu maior desconhecido: si mesmo.





sábado, 1 de dezembro de 2012

Loucos, ou só estão cercados de idiotas?

         
         A sociedade, via de regra, é indelével em marginalizar e subjugar aqueles que não estejam alinhados às suas formas de conduta dominantes. São os “estranhos”, os “loucos”, os “chatos”, descrevem os perfeitamente ajustados. Independente do termo que escolhem, todos eles denominam, dentre inúmeros exemplos, aqueles que não pulam carnaval; que não assistem novelas; que dispensam uma partida de futebol; que conseguem economizar, mesmo ganhando pouco; que sabem – e gostam de – contemplar a solidão; que preferem ficar na cidade do que passar o feriado – quase sempre chuvoso - no litoral e passar mais tempo em filas do que efetivamente no mar; que preferem ficar “cuidando das bolsas” à dançar músicas sofríveis em festas bregas; que não curtem os artistas medíocres e efêmeros que estão “bombando”, cujas carreiras duram menos do que qualquer romance entre celebridades.


           O conceito de comportamento desviante só é possível a partir de seu contraponto, isto é, o conceito de normalidade. Este, por sua vez, é inegavelmente construído de acordo com o contexto histórico/social/político/econômico.

Ora, o padrão de beleza feminino, há poucos séculos, era ser gorda. A atitude louvável de um jovem rapaz, há poucas décadas, era continuar ajudando sua família com o trabalho na lavoura. Hoje, é sair de casa para estudar Direito, Engenharia ou Medicina.

O padrão de beleza feminino na Idade Média e hoje: quem seria o louco em cada época?

    Pois pergunto-me: como acatar o conceito de “esquisitice” criado por uma sociedade cuja própria sanidade é questionável? Uma sociedade egonarcísica, que não tolera os que tentam passar despercebidos; que recrimina os calados e vangloria os que não param de falar e, ao mesmo tempo, não falam coisa alguma; que é incapaz de contemplar a música, não a utilizando para um fim em si mesma, mas sim como mera trilha sonora de cachaçadas e “pegações”; que tenta ensinar respeito e igualdade, mas até para escolher cachorros se baseia em beleza e raça.


          Uma sociedade cujos jovens reclamam não conseguir um bom emprego por não falarem inglês e não terem dinheiro para fazer tal curso, mas que pagam o equivalente para freqüentar a academia de musculação; cujos pais presenteiam suas filhas de 08 anos de idade com um par de salto alto, e as de 18 com um par de silicone.

          Uma sociedade de pessoas que se enchem de drogas e entorpecentes, mas continuam vazias; que bancam maravilhosas viagens à praias paradisíacas e se fotografam em meio a virtuosos monumentos históricos, mas continuam pobres culturalmente; que compram uma televisão de LCD de 40 polegadas para assistir “Domingão do Faustão”; que trocam de carro todo ano, mas que não conseguem pagar o IPVA; que tentam aplacar a angústia – física ou mental – com medicamentos que amortecem os sentidos e o saber; que envelhecem suas peles com exposição solar – real ou artificial – excessiva e, anos depois, correm atrás de tratamentos dermatológicos rejuvenescedores; que tem na televisão seu maior ditador de opiniões, gostos e comportamentos, sem ao menos perceber; que escondem seu verdadeiro eu atrás de máscaras para não sofrerem retaliações; que casam-se sem amar pois “chegou a hora”.

          Cada sociedade, cada século, cada paradigma, enfim, elege seus loucos. Em qualquer um destes contextos, entretanto, mudanças e progressos sempre foram possíveis graças àqueles que ousaram pensar “fora da casinha”, que não se acomodaram ou se conformaram com o que quer que seja.

          Pois se você é um estranho, louco, chato, regozije-se! Como perfeitamente esclareceu o pensador indiano Jiddu Krishnamurti, “não é sinal de saúde ser ajustado a uma sociedade profundamente doente”.