quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Por que sou contra o aborto e a favor da legalização


Sempre fui contra o aborto como ato per se. Assim como a esmagadora maioria dos anti-aborto, meus motivos são basicamente religiosos. Os cristãos, em especial católicos e protestantes, acreditam que toda vida humana deve ser protegida a partir do momento da concepção (o que já é polêmico, pois é impossível definir exatamente em que etapa da fecundação começa a vida). Também acredito na defesa da vida. Mas vou além: dentro de uma perspectiva espiritualista, na qual me insiro, não vejo apenas a rejeição da vida como uma afronta à criação Divina. Acredito na Lei de Causa de Efeito (vulgo carma) e em reencarnação. 

Dentro desse parâmetro, toda gravidez é a possibilidade de um espírito voltar ao plano físico para reparar seus erros pregressos, o que por si só já é uma concessão de grande valia e ansiosamente esperada por muitos no plano extrafísico. Além disso, nada seria por acaso. Aquela criança tenta nascer naquele seio familiar em específico porque precisa, grande parte das vezes, unir-se àqueles com quem, outrora, estabeleceu relações conflituosas.  

Negar a oportunidade de reencarnação já concedida pela Força Criadora e rejeitar a oportunidade de reunir-se a um espírito com cuja convivência estão designados ensinamentos traz prejuízos ao progresso espiritual da mãe, pai e demais envolvidos no aborto. Uma gravidez indesejada revela uma relação onerosa entre os espíritos envolvidos (principalmente progenitores e filha/o), e a gravidez é a oportunidade de reunião (seja em que condição for, mesmo fruto de estupro). Renegar este resgate cármico é fortificar o ônus de uma relação que já é onerosa, além de apenas postergar um reencontro inevitável. 



Mas isso tudo é irrelevante. O Estado é laico. O Direito é materialista. Não posso propor leis jurídicas baseadas em crenças sobrenaturais. A todos é concedido o direito de liberdade de crenças, mesmo que isso signifique a total ausência delas.  E os ateus? E as pessoas que não acreditam em absolutamente nada além de seu corpo físico, que acreditam que, após a morte, não existe absolutamente nada além de um corpo que virará pó e uma mente que se apagará eternamente? Não seria injusto fazer essas pessoas se submeterem a certas regras e convenções baseadas nas crenças sobrenaturais dos outros? Obrigar uma mulher a ter um filho indesejado em nome de um carma, julgamento final ou Deus que ela sequer acredita?!


Tendo isso em vista, faz-se mister desenvolver um raciocínio mais abrangente para se poder ter um posicionamento mais imparcial. Discutirei aqui os temas principais. 

Contra o aborto e a favor da pena de morte

Muita gente é contra o aborto em função do princípio de “direito à vida” e, ao mesmo tempo, a favor da pena de morte, o que não faz o menor sentido. Alguns dirão: “mas o detento condenado à morte era um bandido”. Isso é infundado. O princípio “direito à vida”, por si só, é incondicional. Esse direito seria concedido apenas pelo fato de se estar vivo, ou seja, não há exceções ou requisitos. O próprio postulado é fechado em si mesmo. E, mesmo se houvesse uma brecha conceitual para essa discussão, cairíamos em um jogo de relativismos sem fim. O que faria alguém perder o direito à vida e merecer a morte?Ter assaltado um banco?Ter matado uma pessoa?Ter matado pelo menos duas pessoas?Assistir programas de auditório? O direito à vida é inflexível.


O Brasil aprova o aborto em casos de gravidez decorrente de estupro e em caso de risco à gestante

A atual legislação brasileira permite o aborto em casos de gravidez decorrente de estupro e risco de vida à gestante. Essas exceções já anulam o pressuposto de “direito à vida” que resguarda a proteção legal do feto. “O feto tem sempre direito à vida, salvo...” não tem fundamento lógico; logo, a proibição do aborto em função do pressuposto de “direito da vida” é inválida quando concomitante à sua liberação em determinadas circunstâncias. 

Se o aborto é proibido porque é a vida do feto que está no centro da discussão e, mesmo assim, admitem-se situações em que ele não pode ser protegido pela legislação, nota-se a necessidade urgente de se alterar velhos paradigmas e flexibilizar a discussão acerca do assunto. Desta vez, trazendo à tona também os interesses da mulher, e não só da criança.

“Sabia o que estava fazendo, agora arque com as consequências”


Duvido que as pessoas que falam isso estariam preparadas para aceitar um filho que fosse gerado de todas as relações sexuais que tivessem. Duvido mais ainda que deixem de fazer sexo porque a concepção de uma criança seria provável e, pior ainda, que façam apenas quando pretendem ter um filho. “Mas me protejo”, defendem-se alguns. Ótimo. Acontece que nenhum método anticoncepcional é 100% confiável, então ninguém está ileso. Nem mesmo os que repetem esse frase em negrito.


Somos donas de nossos corpos – mas só quando convém ao patriarcado



Ainda há o consenso de que a mulher é culpada pelos assédios e abusos que sofre, até pelo próprio estupro do qual tenha sido vítima. “Mas também, andando na rua com essas roupas, estava pedindo!”, “Foi ficar bêbada na festa cheia de homem, queria o quê?”, “Aceitou ir na casa dele”, “Entrou no carro dele porque quis” – são exclamações que rodeiam o senso comum – machista – que legitima os abusos. Ok, a menina desmaiou na festa de tanto beber. Isso significa que isso dá concessão para os homens abusarem? Vamos focar no algoz, pessoal?

Mesmo vítima de um abuso, a mulher tem sempre culpa porque, supostamente, “é dona do seu corpo, sabe o que faz com ele, como usá-lo e para quê”. O engraçado é que esse axioma só é válido para justificar as diversas formas de violência contra a mulher. Quando se trata de empoderá-la, como, por exemplo, permitir que decida sobre a continuação ou não de uma gravidez, aí é o Estado – e a Igreja – que assume a responsabilidade por seu corpo. 

Para legitimar os abusos sofridos, a sociedade confere à mulher a autonomia sobre seu corpo: foi ela quem tomou decisões relacionados à ele que culminaram no episódio de assédio ou violência sexual física. Para poder discernir sobre a continuidade de uma gravidez indesejada, entretanto, a sociedade oferece o oposto: espera-se que a mulher distancie-se de seu corpo e seja alienada deste.




Se os homens engravidassem, o aborto seria legalizado



Essa afirmação pode soar audaciosa e puramente circunstancial, mas reflete sobremaneira a estrutura patriarcal vigente. Não é difícil perceber como praticamente tudo é feito pelos homens e para os homens. O exemplo principal que quero dar, pois tem a ver com o tema, é a pílula anticoncepcional.

            A Medicina relega o controle de natalidade às mulheres, sendo a pílula anticoncepcional um dos métodos contraceptivos mais comuns. Elas precisam tomar a pílula quase todos os dias do mês, sem falhar e no mesmo horário por todos os meses do ano, durante todos os anos de sua vida fértil (até a menopausa). Os comprimidos estão repletos de carga hormonal que, adicionada aos já excessivos hormônios presentes no corpo da mulher, dada sua natural instabilidade devido aos ciclos menstruais, se tornam, a longo prazo, verdadeiras bombas potencializadoras de diversas doenças, especialmente o câncer. 

 


          Todo esse incômodo para evitar que uma mulher tenha, no máximo, uma gestação por ano. Os homens, em contrapartida, podem gerar, no mínimo, um filho por dia. Podem fecundar inúmeras mulheres no mesmo dia – falando apenas biologicamente, claro. Isto é, em um ano, uma mulher pode gerar uma criança; um homem, no mínimo 365. E a quem é dada a maior responsabilidade de fazer controle de natalidade? Não há interesse algum em mercantilizar uma pílula anticoncepcional masculina. O paradigma científico já permite o desenvolvimento dessa técnica, mas “as mulheres que fiquem com essa chatice”. Sim, afirmo com veemência que se o aborto fosse de interesse dos homens, caso engravidassem, já seria legalizado.

O aborto já é permitido - para homens abortarem filhos nascidos



A sociedade condena a mulher que pratica o aborto, mas não com a mesma ênfase que condena o homem que aborta simbolicamente seus filhos nascidos. São comuns as histórias de homens que renegam os filhos, que abandonam as companheiras enquanto ainda estão grávidas, que limitam-se a pagar pensão (ou nem isso), que acham entediante passar tempo de qualidade com os filhos, ou que levam as crianças pra tomar sorvete no sábado à tarde achando que é o suficiente. Esses homens não são estigmatizados. Eles não tem sua vida social condenada por causa disso.

Por que essa sociedade que vocifera tanto contra o aborto não faz o mesmo em relação aos homens que abortam os filhos nascidos, cenário que é tão comum? Se o foco é o bem-estar da criança, por que a razoável apatia diante de homens que não nutrem afeto pelos filhos? A resposta é fácil: o homem pode renegar os filhos. O homem pode abortar. É a mulher que não.


Quem é contra a legalização do aborto tem obrigação moral de ser vegetariano

É contra o aborto, mas a  favor de tudo isso(!)


  
 Incoerência é o que ronda uma sociedade que recrimina a terminação de uma vida embrionária com tanto vigor, mas aceita o holocausto diário perpetrado contra os animais usados na indústria alimentícia. Além de incondicional, o princípio do direito à vida deve ser universal e não se limitar à espécie humana. O ensinamento de não se poder acabar com uma vida inocente deve se estender às tantas vidas não-humanas, mas de semelhante complexidade e vontade de viver. Todos os animais são sencientes. Quanto maior a complexidade do animal, menos respostas meramente instintivas ele apresenta: maior sua consciência de si mesmo, sua experiência de dor e tristeza e sua capacidade de desenvolver afeto por outros seres fora de sua própria espécie.
               
            Os animais mortos na indústria alimentícia, vestuário, cosméticos e nas práticas de caça – esta última até hoje absurdamente vista como “esporte” (e me expliquem a virtuosidade de um esporte que tem como finalidade matar outros seres pelo simples prazer de matar e ver sofrer) – estão mais conscientes e sencientes das experiências de dor do que um embrião humano de algumas semanas.

           O porco, visto apenas como um delicioso pedaço de bacon para muita gente, já se provou um dos animais mais inteligentes do mundo, quase no mesmo nível de gorilas e chimpanzés. Sua inteligência é equivalente à de uma criança de 3 anos, tendo o poder de compreender a linguagem simbólica simples e aprender combinações complexas de símbolos para ações e objetos. Além disso, demonstram grande empatia e facilidade em desenvolver afeto por outrem. 

        Bois, vacas, galinhas, dentre outros, experienciam não só a dor plenamente, mas a angústia da iminência da morte quando vêem o sacrifício de seus pares. Angústia, tristeza, mal-estar e desespero também estão presentes no dia-a-dia desses animais dentro dos abatedouros, granjas e fazendas industriais. Eles vivem enclausurados em celas minúsculas onde mal podem se mexer ou usufruir de uma existência minimamente digna.

       As fêmeas são relegadas à função de reprodução, sendo mantidas continuamente grávidas por sucessivas fecundações contra sua vontade – vulgo estupro -, o que lhes confere as mais diversas enfermidades: doloridas infecções mamárias devido à incessante e eterna ordenha,  estresse, dores generalizadas e redução significativa da expectativa de vida. Quando não mais úteis ao processo reprodutivo, são impiedosamente enviadas ao abate, como peças quebradas descartadas e esquecidas no lixo.   


          Certamente terão aqueles alegando que uma vida humana não pode ser comparada a de um animal, que humanos são mais importantes do que as demais espécies. Essa afirmação é equivocada, reacionária e especista. Especismo é o que caracteriza o pensamento de que o ser humano domina o planeta e todas as demais espécies existem para lhe servir. É esse axioma perversamente antropocêntrico que legitima a exploração animal e põe a vida humana, seja em sua etapa mais rudimentar, em posição de infinita superioridade em relação a uma vida não-humana, mesmo em seu grau mais complexo.


Mamíferos complexos como vacas e bois tem menos direitos do que um blastocisto.


Porcos são inteligentes e afáveis, mas o Estatuto é para a Mórula. 
       
          Até hoje animais são usados para satisfazer os desejos humanos porque a sociedade ainda segue a premissa estipulada por Descartes, no século XVII, segundo a qual animais não sofrem por não possuírem a razão e serem, portanto, seres autômatos, o que permitiria sua dissecação viva para fins científicos e diversos, uso em cruéis testes laboratoriais e o bárbaro abate. Seria interessante evoluirmos e mudarmos nosso paradigma ético-moral em relação aos animais. Afinal, já se passaram 400 anos.

          Entretanto, poucos se importam com os animais. Importa mais, inclusive para muitos anti-aborto “pró-vida”, o suculento hambúrguer sangrento, a porção de asinhas de frango bem temperadas e o gostinho de uma linguiça no ponto. “O animal que sofra para me satisfazer”, repetem a maioria, mesmo que inconscientemente. Só humanos estão resguardados do sofrimento, mesmo que sejam apenas uma mórula. 


               
Holocausto animal diário: tudo para servir os humanos!


Animais mantidos em confinamento: bem-estar e dignidade zero. 




Em nome da Ciência

Vaca servindo ao único propósito permitido pelos seres humanos; servi-los.



Estados Unidos, Canadá, Europa > Todos pró-aborto

Brasileiro adora dizer que Estados Unidos e Europa são lugares magníficos e que tudo que vem de lá é super “prafrentex” e deveria ser aplicado aqui.  Tem aqueles que gostariam que exatamente tudo no Brasil fosse igual aos Estados Unidos - até a pena de morte - já que lá “as coisas funcionam”. Mas esquecem que todos esses países “prafrentex” já legalizaram o aborto há quase meio século. Por que a seletividade?

No continente europeu, apenas Polônia e Malta criminalizam o aborto. Polônia (de forte influência católica) aprova o aborto em caso de estupro e quando há risco para a gestante, enquanto Malta, nada menos do que propriedade do Vaticano, proíbe-o em qualquer circunstância. À exceção destes dois, absolutamente todos os países da Europa, além de Estados Unidos e Canadá, permitem o aborto à pedido livre da gestante. Se esses países são “prafrentex” e legalizaram o aborto, isso deve significar alguma coisa.



“Legalizar o aborto vai aumentar o número de abortos”, “aborto vai virar método anticoncepcional” e outros chavões

             Abortos acontecem diariamente, seja contra a lei ou não. Ninguém deixa de abortar porque os hospitais públicos não prestam esse serviço. Ao contrário, todas que desejam realmente descontinuar a gravidez o fazem de qualquer maneira, seja nas clínicas clandestinas onde altos pagamentos possibilitam um procedimento seguro, seja nos becos sem o mínimo de higiene e estrutura, onde muitas mulheres vem a sofrer consequências nefastas como esterilidade ou mesmo a morte.

            Não é possível garantir que legalizar o aborto acarretaria na maior procura pelo procedimento. Muitos países onde o aborto já foi descriminalizado detectaram que o número de abortos não aumentou depois da legalização. Tampouco deve-se supor que o aborto viraria método contraceptivo.  

Pensar que alguma mulher irá usar o aborto como método anticoncepcional é de uma infantilidade enorme. O aborto é extremamente invasivo e deixa profundas sequelas corporais e psicológicas. Nenhuma mulher em sã consciência iria preferir recorrer a este procedimento periodicamente ao invés de experimentar outros métodos contraceptivos. Além disso, o controle de natalidade deve ser responsabilidade do casal, e não recair somente às mulheres. 

Se entende-se que os abortos aumentariam, entende-se necessariamente que os homens também estão falhando na prevenção. Logo, o que é necessário, mais do que a proibição, é enfatizar a necessidade do controle contraceptivo do casal para que os abortos sequer sejam necessários, mesmo se legais. De todo modo, mesmo legalizando o aborto, o Estado poderia regulamentá-lo, estipulando limites de ocorrências por mulher em um determinado período de tempo, por exemplo.

Considerações finais

Feministas não são a favor do aborto. Somos a favor da descriminalização da decisão da mulher de descontinuar a gravidez.  Ser a favor da legalização do aborto não é necessariamente ser a favor do aborto. Ao contrário, é apenas esperar que o Estado possibilite à mulher que tomou a decisão de descontinuar uma gravidez indesejada os meios dignos de fazê-lo, além de não ser presa por isso.  Não defendemos o aborto como método contraceptivo, tampouco como ferramenta de uso indiscriminado para dar fim a qualquer gestação.

Se você é contra o aborto, assim como eu, não o faça. Mas permita que o outro decida o contrário quando isso só afetará a vida dele, e não a sua. Permita que as pessoas possam tomar uma decisão tão íntima e privada sem que haja intervenção estatal. Se é pecado, assassinato e se acarreta em débitos perante uma Divindade, o outro que preste suas contas, seja no Juízo Final, na próxima encarnação ou onde sua religião define. O Estado não pode legislar neste domínio.

Voto a favor da legalização do aborto, embora seja contra o ato em si. O avanço legislativo precisa acompanhar os passos que muitos países, séculos à nossa frente, já deram. Especialmente porque a legislação vigente não é a favor do feto; é contra a mulher.